terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Decálogo do Bom Escravo -Louise Michel (comentado)



O periódico libertário letralivre publicou em seu número 45, na forma de Editorial, o decálogo que abaixo transcrevo e passo a comentar.

 

1 – Pense primeiro em você, sempre em você e só em você.

2 – Pense que a realidade que lhe coube viver é assim e não pode mudar.

3 – Aceite a miséria, a injustiça e a desigualdade como coisa da fatalidade, a vontade de Deus ou da Natureza.

4 – Pense que o Estado, os tribunais de justiça, o parlamento e demais instituições foram criados porque pessoas como você não sabem ou não conseguem governar-se a si mesmos.

5 – Creia que é verdade tudo o que vê na TV, escuta no rádio e lê nos jornais de grande circulação, que eles não ocultam nada de nada.

6 – Pense que é natural que haja pessoas que mandem e outras que obedecem, que haja ricos e haja pobres e que é natural que os ricos mandem e os pobres obedeçam.

7 – Creia que seus patrões fazem a você um benefício ao permitir-lhe trabalhar para eles em troca de um salário.

8 – Creia que a polícia cuida de você, que os militares protegem a pátria e que a Igreja vela pelos pobres.

9 – Pense que só tem direito a ter aquilo que possa comprar, mesmo que necessite daquilo para viver, como os alimentos.

10 – Aceite sem reclamar que haja pessoas que pensem por você porque é o que a você lhe convém.

Comentários



1 – O egoísmo é a mola-mestra do capitalismo. A dominação é mais fácil, macia e suave quando a massa está desunida, desarticulada e é egoísta, quando cada um é persuadido de que seus problemas são culpa exclusivamente sua a dominação é muito mais simples. Neste sentido, algumas religiões cumprem um papel importantíssimo. O surgimento de uma proposta de relacionamento individual e exclusivo com uma divindade antropomórfica, como o faz o protestantismo, tem um papel de elevadíssima relevância na desagregação do movimento dos trabalhadores por melhores condições de existência. Todos vivem os mesmos problemas, mas cada qual os encara como exclusivamente seus e busca soluções escapistas, fugas, como são as taras e aberrações.



2 e 3 – Cito aqui Berthold Brecht:



“Nada é impossível de mudar



Desconfiai do mais trivial,

na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.”



Aceitar as coisas como são e procurar “ajustar-se” como recomenda toda a pseudo-literatura de auto-ajuda, não por acaso tão na moda nesta época sombria do capitalismo é mais uma tara, um escapismo, uma fuga da realidade.



A espécie animal se diferencia da mineral e da vegetal pela mobilidade e pelo sistema nervoso complexo, que compele a evitar a dor e buscar o prazer. Dentre os animais, o ser humano é o mais dotado de vontade, razão e capacidade de se rebelar e transformar a realidade a seu talante! Jogar fora estas qualidades é desprezar a condição humana, a essência do ser do homem no mundo. Conformar-se com o mundo como está, injusto, cruel, traiçoeiro e mal gerido é renegar até mesmo a condição básica de animais racionais que temos. E até isto, desumanizar o ser humano, o capitalismo consegue. A ponto de termos de lembrá-lo do básico por todo o tempo...



4 – Nós criamos Instituições para simplificar o encaminhamento de nossas vidas, não o contrário. Criamos uma ferramenta para nos facilitar a existência e esta ferramenta hoje se alimenta de carne humana. Isto está na raiz dos filmes e livros que enfatizam existir “algo de errado”, que precisa ser revolucionado. Vemos isso em “O Exterminador do Futuro”, em “Matrix”, em “Aeonflux” e em muitos outros da produção estadunidense. Além daqueles filmes em que o bom policial é aquele que, ao lado da população, só consegue sucesso em sua empreitada após romper com o sistema, pedir demissão ou ser temporariamente afastado. Dentro das instituições formais pouco ou nada se consegue fazer de bom ou bem. Quem tentou, de alguma forma, domesticar a máquina foi por ela domesticado ou se decidiu a romper com suas condicionantes. O aparato estatal não é passível de “reforma” a favor do humano, o que se vem tentando desde praticamente a Revolução Francesa até nossos dias. Há que se subverter o aparelho estatal. Nossa luta não é por um Estado melhor ou sequer por um governo melhor, mas para que cresçamos intelectual e moralmente a tal ponto que governemos a nós mesmo sem necessidade deste tipo espúrio de intermediação.

            A refletir ainda: por que será que a maioria – sempre a maioria... – se rejubila ao enaltecer os rebeldes do passado (Jacques DeMolay, Che Guevara...) enquanto faz questão de impedir que sejamos nós os rebeldes de hoje?



5 – Rádios, TV’s, jornais, escolas e Igrejas, por definição, são Aparelhos Ideológicos do Estado. Estão a serviço da Classe Dominante. No Brasil/2006 a classe dominante é formada por uma coalizão entre os megaespeculadores e o lumpemproletariado, unidos contra os trabalhadores. Os Aparelhos Ideológicos de Estado estão a seu serviço, portanto, a princípio, é precisamente o oposto: não devemos acreditar ou acreditar pouco no que transmitem em noticiários ou ficções, particularmente através da TV aberta. Aquela história de “todos juntos na mesma emoção” é conduzida, na TV, ao paroxismo de manipular o momento de rir, de chorar, de sentir esta ou aquela emoção e manter a todos passivos diante da teletela de um mundo que não deve ser modificado.



6 – No Estado de Natureza existem lideranças naturais, que se vivem em tudo e por tudo em prol da maioria. Isto é nítido e perceptível nas sociedades ainda não tocadas pela infecção capitalista da qual um dia, esperamos, a humanidade se verá curada. À medida que a sociedade se sofistica e o capital se transforma em valor supremo, quem governa o faz pelo e para o capital, desprezando olimpicamente o ser humano que vive, ama e trabalha.

            Assim, em nossa sociedade, todos os valores estão embaralhados: valoriza-se a mediocridade das aparências e desvalorizam-se as ciências, filosofias, artes e cultura mais relevantes e profundas. Exceções, como sabem muito bem os matemáticos, são muito úteis para confirmar a regra.

            A atual hierarquização da sociedade é resultado de séculos de artificialismo, não há nada, absolutamente nada de “natural” no tipo de encaminhamento de que somos hoje vítimas. Quem manda deve-o mais à sorte ou capacidade de rapina do que a qualquer tipo de capacidade de trabalho altruísta ou coisa que o valha e a propaganda se esmere em reforçar. E a quem obedece, falta o senso crítico, destruído por séculos de domesticação.



7 – Quem gera a riqueza é o trabalhador. No capitalismo clássico, o patrão usufrui da maior parte da riqueza gerada pelo trabalhador. No capitalismo especulativo do século XXI a coisa piorou muito: instituições bancárias, megaespeculadores ficam com o grosso do produto do trabalho e este passa a ser distribuído, em partes desiguais, entre patrões e empregados – com o requinte de se reservar somas consideráveis à manutenção de uma massa de clientes do Estado, dóceis eleitores incapacitados para a consciência política.



8 – Aqui, novamente, faço referência a filmes hollywoodianos – a única dimensão cultural em que o Império Ianque se destaca em raras e preciosas exceções. Retrato muitas vezes metafórico da vida concreta, aqueles que conseguem fazer algo de bom e útil pelo ser humano são sempre os “ousiders”, aqueles que se rebelam contra a ordem e o poder constituído, seja na polícia, nas forças armadas ou nas igrejas formalmente estabelecidas.



9 – “Chi no lavora no mangierá” – refrão do hino comunista italiano Bandiera Rossa – informava da ojeriza que os trabalhadores sentem pela classe que lhes parasita e usufrui do fruto de seu trabalho. Anarquistas há séculos informam que este princípio está equivocado. O único pré-requisito a ser exigido a que seja garantido o alimento na sociedade da fartura, abundância e desperdício em que vivemos é simplesmente “estar vivo”. Que a disputa entre seres humanos, se tem de ocorrer, que o seja em nível mais elevado do que a luta pela sobrevivência.



10 – Discorde. Discorde por princípio de tudo o que lhe impingem contra a vontade. Zangue-se. Lute por melhoras. Nada dê por definitivo ou natural. Pense. Jamais aceite delegar competência a que pensem ou decidam por você, seja em que dimensão for. Quem sabe governar a sua vida melhor que você mesmo?



Lázaro Curvêlo Chaves – 23/06/2006

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